quinta-feira, 1 de setembro de 2011

IYOV (JÓ).

INTRODUÇÃO AO LIVRO DE:














INTRODUÇÃO







Visão geral

Autor: desconhecido.

Propósito: Explorar os limites e os usos adequados da sabedoria proverbial tradicional no caso do sofrimento de um justo.

Data: c. 970-586 a.C.

Verdades fundamentais:

Yaohu tem propósitos por trás de todo sofrimento, mas esses propósitos estão, em grande parte, ocultos para nós.

A sabedoria proverbial convencional aplica-se facilmente a algumas situações – mas não do sofrimento dos justos.

Os justos que sofrem devem humildemente associar os seus lamentos com afirmações acerca da bondade e da justiça de Yaohu.

A compreensão humana acerca da sabedoria é limitada e sempre começa com o temor de Yaohu e a obediência aos seus mandamentos.





Propósito e características

Entre os escritos de sabedoria do Antigo Testamento (Jó; Provérbios; e Eclesiastes), o livro de Jó situa-se ao lado de Eclesiastes como uma exploração dos limites e usos adequados da sabedoria proverbial convencional. A sabedoria proverbial convencional descreve os ideais de vida e dá direção para entender o curso normal da experiência humana. Contudo, é possível entender mal e apropriar-se indevidamente da sabedoria proverbial como se o ideal e o comum fossem sempre apropriados. Surgem muitas circunstâncias que exigem uma reflexão mais profunda e um esforço que vá além da orientação da sabedoria proverbial. Isso se aplica especialmente ao sofrimento dos justos. O livro de Jó opõe-se a uma confiança ingênua na sabedoria proverbial ao confrontar questões sobre a bondade e a justiça de Yaohu, uma vez que ele permite que o seu povo fiel sofra.







CRISTO EM JÓ.

O livro de Jó prenuncia a pessoa e a obra de Cristo de inúmeras maneiras. A ligação mais direta entre Cristo e esse livro está no fato de que Cristo é “sabedoria de Yaohu” (1Co 1,24) e que nele “todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos” (Cl 2,3). Essa identificação de Cristo com a sabedoria provém do fato de que ele é o Logos eterno por intermédio de “quem todas as coisas foram feitas” (Jo 1,3) e que, como o Messias encarnado, ele é Aquele em quem repousa “o Ruach Hakodesh de sabedoria e de entendimento, o Ruach Hakodesh de conselho e de fortaleza, o Ruach Hakodesh de conhecimento e de temor do ETERNO” (Is 11,2). As coisas pelo qual Jó e seus amigos anseiam, a saber, entendimento e sabedoria, são encontrados em Cristo. Quando buscamos sabedoria à parte dele, estamos condenados a encontrar apenas a loucura do mundo (1Co 3,19). Quando homens e mulheres estão unidos com Cristo, ele lhes concede sabedoria. A graça dada aos que crêem é derramada “em toda a sabedoria e prudência” (Ef 1,8). Ou seja, a sabedoria começa com a fé em Cristo e provém da graça que é encontrada no ato de seguir Cristo e confiar nele. Todo cristão que “necessita de sabedoria [deve pedi-la] a Yaohu, que a todos dá liberalmente” (Tg 1,5). Mesmo assim, ao contrário do espírito contencioso que Jó e seus amigos exibem enquanto conversam, “a Sabedoria, porém, lá do alto é, primeiramente, pura; depois, pacífica, indulgente, tratável, plena de misericórdia e de bons frutos, imparcial, sem fingimento” (Tg 3,17).

Segundo, o livro de Jó insiste que a capacidade humana de compreender a sabedoria é tão limitada que, para nós, a sabedoria pode se resumir em dois elementos: temer a Yaohu e obedecer aos seus mandamentos (veja a nota sobre 28,28). Esse tema se cumpre em Cristo no sentido de que a sabedoria que vem de Yaohu significa submeter-se a Cristo com reverência e obediência.

Terceiro, em inúmeras ocasiões, o livro de Jó reconhece a necessidade desesperada que os seres humanos têm de um mediador entre eles e Yaohu (veja 5,1; 9,33; 16,20; 19,25; 33,23). A situação difícil da humanidade caída é tão terrível que precisamos de alguém com acesso ao trono de Yaohu para defender a nossa causa. Somos impotentes em nós mesmos. Cristo supre essa necessidade como o único Mediador entre a humanidade e Yaohu (1Tm 5,2).

Quarto, como um homem justo cuja lealdade para com Yaohu é testada pelo sofrimento, Jó prenuncia o cumprimento do teste em Cristo. Cristo excedeu em muito a justiça de Jó no sentido de que não teve pecado algum. Contudo, ele foi tentado no deserto e ao longo de toda a sua humilhação simplesmente para suportar tudo sem culpa (Hb 4,15). Por essa razão, quando não são perfeitos em seus sofrimentos, os fiéis podem descansar certos de que Cristo sofreu em nome deles e de que sua justiça e recompensa lhes são imputadas por meio da graça de Yaohu.







JÓ. A finalidade do Livro de Jó não é explicar – conforme comumente se diz – o enigma do sofrimento injusto, nem resolver o problema do mal. É, antes, uma tentativa do homem perplexo de situar-se ante a Yaohu santo e todo-poderoso.



Plano do livro. A obra se divide claramente em cinco partes:

1. Um prólogo em prosa, no qual o herói, Jó, homem piedoso e rico, é repentinamente atingido por calamidades inexplicáveis e, apesar disso, conserva toda a sua confiança no ETERNO (1,1 – 2,13).

2. Um diálogo em verso, no qual se debatem Jó, homem brioso e revoltado, e três amigos seus: Elifaz de Teman, Bildad de Shûah e Sofar de Naamá, sábios típicos do antigo Oriente. Este diálogo se desenrola de maneira lenta e solene, ao longo de três séries de discursos poéticos, enquadrados por dois monólogos do herói (3,1 – 31,40).

3. Uma série de discursos em verso, representando a intervenção imprevista de um quarto amigo, Elihu, filho de Barakel, o buzita (32,1 – 37,24).

4. Um diálogo, em verso, entre o ETERNO e Jó (38,1 – 42,6).

5. Um epílogo, em prosa, em que o herói recupera a saúde, a riqueza e a reputação, bem como novos filhos. Como os patriarcas, ele morre repleto de dias (42,7-17).



Unidade e data de composição. As diferenças de vocabulário, de estilo, de tradição cultural e de idéias religiosas, verificáveis nas diversas partes da obra, indicam a muitos leitores que ela não foi composta de um só jato. A título de hipótese, pode-se propor:

É bem provável que o prólogo e o epílogo em prosa tenham inicialmente constituído um conto folclórico (1, 1 – 2,13; 42,7 – 17). Ele narrava a paciência exemplar de um homem da terra de Us – talvez em Edom (1,1), a sudeste do mar Morto – que gozava de uma reputação única entre os “filhos do Oriente”. Pode-se pensar que a história deste Jó, dotado de uma piedade sem igual (1,1-8; Tg 5,11), circulava de forma oral entre os sábios do Oriente Médio, lá pelos fins do segundo milênio a.C., e tenha sido recontado em hebraico na época de Samuel, David e Salomão (sécs.XI e X a.C.).

Depois da catástrofe de 587 a.C., os judeus exilados em Babilônia tinham perdido tudo. Sua perplexidade levava alguns a perder toda crença no valor da existência e a questionar até sua fé na justiça de Yaohu. Servindo-se da bem-conhecida história do infeliz Jó (Ez 14,14.20), um poeta da segunda geração do Exílio (cerca de 575 a.C.) compôs o poema (3,1 – 31,40; 38,1 – 42,6), com uma finalidade pastoral e profética, semelhante à do seu predecessor Ezequiel (cerca de 592-580 a.C.). Este poeta traz à cena o herói, que sofria sem causa aparente, e três de seus amigos, tentando discutir poeticamente o valor da existência e os direitos do homem à justiça, humana e divina (31,35-37). O próprio ETERNO oferece ao herói ocasião de defender-se e de condenar a conduta divina (40,8-14), mas Jó recusa-se a aceitar o desafio e simplesmente se arrepende da sua presunção (42,1.6).

O poema se encerra com o reconhecimento da santidade divina, que ultrapassa infinitamente a imaginação dos homens e até mesmo as noções mais difundidas da providência e da bondade de Yaohu. Sugere-se ainda uma noção de pecado que transcenderia uma distinção demasiado simplista entre bem e mal, distinção em que se situa a ambição egocêntrica de um homem virtuoso.

O epílogo em prosa (42,7-17) parece contradizer a teologia do poeta, ao afirmar o dogma popular da restrição individual. Este epílogo só sobreviveu porque pertencia a um conto clássico, herança da sabedoria secular do Oriente. Talvez ele fosse admiravelmente conveniente às idéias dos escribas moralistas do judaísmo na época persa, que asseguraram assim a transmissão do poema à posteridade.

Um discípulo da escola jobiana ajuntou, provavelmente com fins apologéticos, os discursos de Elihu (32,1 – 37,24). Notam-se, efetivamente, nestes discursos uma linguagem, um estilo e um método retórico bastante distintos dos de um diálogo propriamente dito. Elihu insiste no valor educador do sofrimento e acrescenta certos argumentos que mestres da escola sapiencial tradicional lamentaram ser insuficientemente desenvolvidos por Elifaz, Bildad e Sofar.

O texto do terceiro ciclo do diálogo poético entre Jó e seus três amigos (em particular 25,1 – 27,23) parece ter sofrido dano na transmissão oral ou manuscrita. Falta o terceiro discurso de Sofar, e certas sentenças postas na boca de Jó parecem refletir a posição tradicional de um de seus amigos (24,18-25; 26,5-14). Alguns exegetas sugerem que os editores do poema procuraram suavizar a dureza do herói, emprestando-lhe palavras originalmente pronunciadas por Sofar. Muitos pensam também que o Elogio da Sabedoria (28,1-28) representa uma adição posterior. Entretanto, seu estilo está bem próximo do tom dos discursos do ETERNO (38,1ss.), e pode-se supor que a finalidade deste poema era separar a discussão dialogada da peroração de Jó.



Gênero literário. Há tempos, notou-se que a forma literária deste livro é única nas Escrituras. Apesar de a tradição judaica e cristã o ter relacionado entre as obras de Sabedoria e de nele se encontrarem numerosas sentenças de sabor sapiencial, admite-se, hoje, que Jó escapa a todo esforço de classificação.

A forma do diálogo, celebrizada por Platão, nasceu provavelmente na mais remota antiguidade, na Mesopotâmia e no vale do Nilo. Um documento cuneiforme, que remonta ao 3º milênio, levanta o problema do mal em termos ousados e é hoje conhecido como o Jó sumeriano. Outro texto cuneiforme, escrito em língua babilônica, trata do Justo sofredor. O Diálogo acróstico sobre a teodicéia, cuja cópia data ao menos do séc. IX a.C., põe em cena um doente e seu amigo, a discutir sobre a justiça divina, ao longo de vinte e sete estrofes de onze linhas cada uma. O amigo em questão emprega argumentos que reaparecem nos discursos de Elifaz de Teman.

No Egito, o Diálogo do homem cansado da existência com sua alma faz falar um miserável enfermo, escorraçado de casa, como um maldito com verdadeiro lirismo. Não se pode deixar de observar que Jó é o único personagem da literatura hebraica que exprime fascínio pela morte. Além disso, o vocabulário e numerosas alusões deste poema bíblico sugerem certa familiaridade com a cultura egípcia.

É, pois, provável, que o poeta de Jó pertencesse ao circulo internacional da Sabedoria e conhecesse a forma literária do diálogo. Tal gênero se prestava impunemente à apresentação em público de opiniões subversivas ou, pelo menos, de idéias que questionavam os dogmas de uma sociedade conformista. Deve-se notar, entretanto, que o poeta compôs uma obra original.



Nacionalidade do poeta. O diálogo em verso ignora a eleição e a missão de Israel, a aliança mosaica, a aliança davídica, a colina sagrada de Sião, o Templo, o culto sacrifical e a esperança messiânica. Aliás, a história popular e arcaica do herói Jó apresentava-se em moldes estrangeiros, nada israelitas. A presença de palavras e torneios de sintaxe que não se encontram em nenhuma outra parte da Bíblia hebraica confirma o caráter excepcional do livro. Alguns estudiosos concluíram, destas observações, que o autor era um sábio oriental não-israelita. Chegou-se até a levantar a hipótese de ser o hebraico do texto atual tradução de algum original aramaico ou árabe.

Tais conjeturas não têm fundamento. A utilização de um dialeto hebraico diferente do de Jerusalém, ao lado de algumas liberdades tomadas pelo poeta, pode explicar as particularidades literárias de Jó. O criador do diálogo em versos era um judeu, pois conhecia intimamente os oráculos dos grandes profetas, em particular, as “confissões” de Jeremias. Ele sabia de cor os salmos que se cantavam no Templo de Jerusalém e os provérbios que “se diziam” na corte dos reis de Judá.

Pode-se supor que, tendo sobrevivido à catástrofe de 587 (data em que o Templo foi destruído, a cidade incendiada, a população dizimada, os sobreviventes dispersados ou deportados para Babilônia), o poeta foi um dos primeiros “judeus” (por oposição ao sentido antigo de “Israel”). A seu modo, diferentemente do profeta Ezequiel, ele contribuiu para o nascimento do judaísmo. Mesmo não tendo sido nem profeta, nem sacerdote, nem salmista, esse herdeiro de sabedoria cosmopolita exerceu, junto aos seus contemporâneos, um ministério profético e pastoral. Para uma comunidade destituída de culto e desarraigada, ele criou uma nova literatura, reunindo os gêneros mais diversos como a lamentação, o hino, a máxima, a sátira, a controvérsia judiciária, a maldição, a invectiva profética e até mesmo o antigo relato de teofania, para propor, sob forma quase dramática, uma espécie de “diversão” literária.

Ocasião do poema. Na falta de indicação explícita, pode-se apenas levantar uma conjetura quanto à ocasião do poema. Como outras obras em verso e numerosas tradições em prosa ritmada, conservadas no Antigo Testamento e tradicionalmente consideradas documentos escritos, o diálogo de Jó foi, sem dúvida, inicialmente “publicado” em forma oral. Não era, originalmente, um manuscrito para leitura. Devemos antes pensar em verso que se “diziam” ou se recitavam com acompanhamento musical. Como as célebres rapsódias da Grécia homérica ou os cantos épicos dos trovadores medievais, os lamentos de Jó foram cantados provavelmente em círculos de deportados judeus saudosos de suas festas. Sabe-se que os grupos étnicos ou religiosos desarraigados apegaram-se obstinadamente à observância de seus calendários rituais. Sem Templo e sem altar, que gestos litúrgicos os exilados ou Babilônicos poderiam cumprir?

Nessa época tumultuada e incerta, puseram-se os judeus a celebrar o Ano Novo e o Dia do grande Perdão, antes da festa das Tendas. Teria o poeta de Jó lançado mão desta ocasião para distrair as multidões, dirigindo-lhes, de forma “paralitúrgica”, uma mensagem concernente à verdadeira fé?

Sabe-se que a festa babilônica do Ano Novo calcava-se na paixão, na morte simbólica e na renovação do monarca, dentro do quadro de renovação da criação e da fertilidade vegetal e animal. Ora, acontece que o poeta de Jó se serviu de numerosos traços da ideologia régia para descrever os sofrimentos e orgulho do seu herói. Aliás, ele entreteceu, na sua obra, alusões à criação do mundo e articulou os discursos do ETERNO com o ciclo do ano, culminando com o retorno da chuva do outono (38,38), o que, também, foi feito pelo autor dos discursos de Elihu (36,27 – 37,24). Seja como for, a intenção do poeta ia muito além da veneração do calendário. Com a ajuda de uma parábola, ele quis proclamar um oráculo profético de advertência e de esperança.

Aos que se sentiam devorados pela amargura (Lm 3,15) e mesmo pelo rancor contra um Deus que não cumpria suas promessas, o poeta narrou a antiga história do homem integro da terra de Us, porque essa história questionava os deportados judeus no mais profundo do seu derrotismo, ao perguntar-lhes: “Será em troca de nada que Jó teme a Yaohu?” (1,9).

Fora em vão que o povo da Aliança tinha mantido, apesar de todas as corrupções de vários séculos, certo nível de pureza cultual e um sentido ainda vivo de responsabilidade social. Comparando-se a seus perseguidores, Israel podia facilmente pensar que não merecia o seu destino. Arrogava-se direitos sobre seu CRIADOR. O poeta de Jó apõe sua voz a essa ilusão de todas as religiões naturais. Como os grandes profetas e alguns salmistas, ele compreendera que o mercantilismo não tem lugar na verdadeira fé e que à sublimidade corresponde à gratuidade da devoção.

A teologia do livro. O leitor moderno não pode ignorar a complexidade da composição do poema, nem o contexto histórico no qual veio à luz.

A história em prosa. Alguns aspectos do conto folclórico dificilmente corresponderiam ao pensamento do autor do diálogo. Discípulo de Jeremias, o sábio judeu meditara sobre o escândalo da desgraça dos humildes e da prosperidade dos maus. Ele provavelmente não aceitava explicar o sofrimento “sem causa” como resultado de uma aposta entre um Deus ingênuo e o mais cínico dos membros da corte celeste. Aliás, o poeta evitou cuidadosamente qualquer menção a este “adversário” mítico. Em vez disso, é o ideal de uma piedade “gratuita” que alimentou seu gênio poético e estimulou o rigor da sua indagação teológica.

O poeta não é, pois, responsável por todos os pormenores da narrativa em prosa. Serviu-se dela simplesmente como de um trampolim do qual lançar seus discursos. Uma vez que a história do piedoso Jó punha em cena diferentes personagens, ele os fez falar à sua própria maneira. Utilizou o canto popular para disfarçar uma discussão sobre a condição humana, o “toma lá, dá cá” dos cultos (2,4) e a pureza de uma fé que não pede contas a Yaohu.

Em contradição com os protestos de Jó, ou com os discursos do ETERNO, o epílogo em prosa, sabe-se bem, reafirma o dogma da retribuição. Era precisamente isto que repugnava à sensibilidade do poeta e é o que ele atacou com vigor sem paralelo na literatura do antigo Israel. Daí surge a questão que vem perturbando os intérpretes ao longo dos séculos: o desfecho do livro poderá de alguma forma, concordar com a teologia do poeta?

É preciso aqui recordar a distinção entre a recitação oral de um poema e sua codificação escrita, em data posterior. Por pertencer à herança nacional, a “narrativa folclórica” facilmente encontrou lugar nos manuscritos legados à posteridade judaica da época persa (séc. V e IV a.C.) pelos guardiões dos tesouros literários da nação. O “poema” encontrou aí seu lugar, por ter sido vazado na narrativa tradicional. Podemos até supor ter sido precisamente a conclusão piedosa da história em prosa que facilitou a sobrevivência do poema, no qual a ousadia da revolta de Jó e a ironia da resposta divina questionam a justiça de Yaohu ou, quando menos, distinguem-na da justiça dos homens.

O diálogo em verso. O autor do diálogo deu livre curso à paixão que sempre se apodera do espírito humano, quando confrontado com o enigma da dor. Ele não perde de vista, por um momento sequer, o escândalo intelectual e moral que perturbou o judaísmo, desde sua aparição na história, e que continua a inquietar os homens. O poeta de Jó fala à humanidade de todos os tempos, porque não somente enfrentou o escândalo da existência e da morte, mas também retratou o homem de fé que, na agonia, raia a blasfêmia e, ao mesmo tempo, busca a presença de um Deus que ama – Yaohu. Para ele, o silêncio divino é o sofrimento último. Mais que a destituição dos bens, que a perda dos filhos, o banimento da sociedade, a incompreensão da esposa e dos amigos e mais, até mesmo, que os terrores de uma doença fatal.

Outro tema se enxerta neste: Jó reivindica, como um direito, que sua integridade seja publicamente reconhecida. Ao contrário dos cantores de lamentações que, no livro dos Salmos, suplicam, de cem maneiras, para ser libertados de seus males. Jó pede somente que Yaohu admita a sua inocência.

Jó é um exemplo não somente de virtude, mas também de brio. Sob o efeito dos ataques insidiosos da doença e da dor moral, seu brio exacerbado vai descambando, pouco a pouco, para um orgulho sobre-humano, quase para a desmesura de um titã. Ele se compara ao Oceano e ao Monstro marinho (7,12) que, segundo a mitologia acádica, acorrentou e manteve sob os olhos o deus da ordem, ansioso por salvaguardar as fronteiras da terra habitável. Elifaz captou a nova dimensão da hybris que impele o homem moral, no ardor da provação, a se tomar, erradamente, por um semi-deus. Ele pergunta a Jó, fazendo clara alusão ao mito do Homem primordial:



Serás Adão, o que nasceu primeiro, ou foste dado à luz antes dos outeiros? (15,7)



Sem vergar, o herói persiste em exigir, não a cura, mas em ser liberado das acusações assacadas contra ele. É esse desejo obstinado que o leva a romper, por um momento, a crença tradicional no caráter definitivo da morte, crença que sempre aceitara (7,21; 14,10). Após ter declarado que tinha, nos céus, uma testemunha que tomaria sua defesa contra o próprio Deus (16,18-21). Ele clama, enfim, sua certeza de que, para além do seu último suspiro, já nas bordas do abismo, o seu redentor se levantará, vivo, para lhe permitir ver a Yaohu – seu Deus (19,25-26).

Todos os seus estão mortos ou, de certa forma, o excomungaram (19,13-22); ele não tem herdeiro humano que possa resgatar sua honra, depois de sua morte. Entretanto, ele sabe – e afirma solenemente esta certeza – que um ser misterioso desempenhará esse papel. De acordo com o antigo direito consuetudinário, o “redentor” devia ser um parente do morto, cujo dever era vingar o sangue derramado (de onde a expressão: “o redentor do sangue”) ou preservar, através de compra legal, a integridade da terra ancestral (2Sm 14,11; Rt 2,20 etc.). Se bem que certas palavras desta passagem, hoje famosas, tenham sido mal preservadas nos manuscritos e que as antigas versões quase não ofereçam auxílio, o texto hebraico de 19,26b está solidamente confirmado: Na minha carne contemplarei a Yaohu.

Compreende-se por que os primeiros cristãos leram aqui o prelúdio da fé na ressurreição da carne e a prefiguração de um “Redentor” que venceria a morte. No séc. VI a.C., a expressão “na minha carne” significava, provavelmente, o homem na sua plena identidade concreta, e tal modo de ver é confirmado pelas repetições na frase que segue (v. 27). Aliás, foi isto que, entre os judeus e os primeiros cristãos, deu a crença na vida futura uma forma que nada tem de comum com a idéia helenística da imortalidade da alma. A crença na ressurreição da carne supõe uma esperança realista numa vida em comunhão com Yaohu, contrastando com o modo etéreo e desprovido de substância sugerido pela especulação não-hebraica sobre a alma imortal. Além disso, esta crença pressupõe um ato soberano de nova criação, por parte de Yaohu, sem jamais considerar a imortalidade como um direito inerente à natureza humana.

As interpretações deste Credo notável (19,23-27) são as mais diversas, mas não há dúvida de que o poeta de Jó preparou, desde a aurora do judaísmo, uma teologia da mediação entre um Deus que parece hostil e se mantém longínquo, de uma parte, e, de outra, o homem abandonado no mundo. Pode-se pensar que este poeta tenha legado ao seu herói uma esperança que seu coração nutria e que conseguiu exprimir segundo uma tríplice gradação: Primeiro, o sonho inacessível de um árbitro que interviesse entre Yaohu e o homem, pondo-o face a face, realizando a função de conciliador (9,33); em seguida, a convicção de que, depois do seu crime, Jó receberia de sua testemunha uma defesa póstuma na corte suprema (16,12-21); finalmente, a certeza inabalável da presença final de um redentor que não somente resgatará sua honra, mas ainda lhe permitirá ver a Yaohu (19,25-27).

Até a peroração de sua longa apologia, o herói conserva a dignidade de um homem que não tem nenhum sentimento de culpa. Lembra-se somente dos pecadilhos de juventude. Ele acolherá, pois, a Divindade, revestido de uma majestade real. “Como um príncipe” ele irá ao encontro do Poderoso (31,37).

A teofania do seio do furacão. As respostas de Jó aos discursos do ETERNO mudam de tom de maneira surpreendente. E o leitor descobre a intenção profunda do poeta: não é sua intenção resolver o problema do mal, nem justificar os caminhos divinos segundo os cânones da moral humana. Trata-se, pelo contrário, de purificar a teologia de todo moralismo antropomórfico, de esboçar uma nova abordagem da realidade da fé e, finalmente, de indicar o caráter insidioso do pecado que espreita o homem integro e piedoso.

A primeira intenção do poema de Jó é liberar a sabedoria divina da noção humana de justiça. Quando o ETERNO “responde” a Jó, do seio do furacão (alusão velada às teofanias de Moisés, Êx 19, e de Elias, 1Rs 19), ele não oferece, de fato, nenhuma resposta às perguntas do homem de dor. Antes, é ele que faz novas perguntas, uma depois da outra, antes de chegar a mais perturbadora:

O contendor do Poderoso ainda critica?



Responda, POIS, O QUE CENSURA Yaohu (40,2).



Jó recusa-se a apanhar a luva (vv. 3 – 5), e o ETERNO, mais uma vez, ironiza o campeão que procurava briga e o convida, não sem ironia, a preparar-se para o último combate:



Cinge os teus rins, como um guerreiro; vou te perguntar e tu me farás saber:

Pretendes mesmo anular meu julgamento, e condenar-me, para te justificar? (40,7 – 8).



Esta dupla pergunta vai ao núcleo da discussão e oferece a chave para todo o Livro de Jó. O poeta serve-se do mistério do sofrimento para sondar o mistério de Yaohu.

O herói não deixou de proclamar sua integridade. Várias vezes indicou que sua miséria constituía um desmentido à justiça de Yaohu. De fato, ele mantinha que Yaohu reconheceria, com toda certeza, sua inocência e, querendo implicitamente ditar seus próprios termos ao Poderoso, tentava justificar a si mesmo.

Enquanto seus amigos entravam na liça para defender incansavelmente a idéia da retribuição divina e o valor da conversão (mostrando-se empenhados num empreendimento intelectual de “teodicéia”, ou justificação de Yaohu), Jó insistia nos direitos que o homem adquire por sua conduta moral. Ele se fechava na busca de uma “antropodicéia”, ou justificação do homem. O poeta pode agora mostrar que a justificação do homem nunca será conseguida senão à custa da condenação de Yaohu.

O estilo da controvérsia profética que apareceu em Jó insistia nos direitos que o homem adquire por sua conduta moral. Ele se fechava na busca de uma “antropodicéia”, ou justificação do homem. O poeta pode agora mostrar que a justificação do homem nunca será conseguida sendo à custa da condenação de Yaohu.

O estilo da controvérsia profética que apareceu em Jó 40,2 reencontra-se no v. 8, onde o verbo “quebrar” (nesta tradução: anular [meu julgamento]) é o mesmo que emprega Jeremias ao falar da ruptura da antiga Aliança (Jr 31,32). Fazendo uso de tal terminologia, o poeta sugere que Jó partilhava, de fato, com seus amigos, a velha crença na retribuição, ligada à ideologia da aliança de obrigação mútua. Jó não “teme a Yaohu em vão” (1,9). Tanto como seus amigos, também ele atribuía implicitamente a Yaohu um sentido humano da justiça, baseada na idéia comercial de compra e venda.

Querer encontra um vínculo entre a perfeição moral do homem e sua felicidade é conceber a Yaohu como um homem de negócios tratando com seus clientes. A fórmula “toma-lá-dá-cá” (2,4) não exprime apenas a idéia do “adversário” mítico da história em prosa; ela caracteriza, igualmente, todos os personagens do diálogo em verso. E é isto que o próprio ETERNO revela a Jó, falando-lhe de dentro do furacão. O poeta mostra os perigos da teologia da Aliança, cada vez que o dogma da obrigação contratual se corrompe e dá a impressão de que a liberdade de Yaohu é limitada. Como Israel, Jó pensava que sua integridade, superior à de todos os orientais, lhe garantia direitos sobre Yaohu.

O herói é, enfim, persuadido a encarar o erro sutil da sua posição. Ele não pode justificar a si mesmo sem, ao mesmo tempo, declarar que Yaohu “é mau” (sentido literal do verbo em 40,8b). Jó aprende que, afinal, enveredara pelo mesmo caminho de seus três amigos. A defesa de Yaohu é, sempre, uma defesa do homem. A teodicéia é, de fato, uma “antropodicéia”.

Posto em presença da santidade infinita do Criador dos mundos, Jó descobre que não pode salvar-se a si mesmo. Deve renunciar à ilusão da religião como técnica de bem-estar e segurança. Ao compreender que temeu a Yaohu “por nada” (1,9), a graça inefável da presença se torna para ele o suficiente. Ele não pede mais nada.

A segunda intenção do poeta era delinear uma abordagem nova para a realidade da fé. É verdade que as antigas tradições “javista” tinham, há muito, expressado a relação entre Yaohu e o homem como um simples relacionamento de confiança entre duas pessoas (Gn 15,6). Os grandes profetas, Isaías em particular, já haviam entrevisto na fé (emuná) o segredo da perseverança, a capacidade de viver um amém (Is 7,9) ou de viver a justiça e a retidão (Hab 2,4). O poeta jobiano não usa esta linguagem, mas mostra claramente que o milagre da presença divina está na própria raiz do triunfo sobre o sofrimento. Ao evocar a teofania de Moisés e de Elias e ao antecipar a epifania final, celebrada nos hinos da festa do outono, o poeta dizia a seus conterrâneos deportados (sem Templo, sem monarquia, sem pátria nem esperança de um porvir nacional) que Yaohu do céu e da terra estava ainda e sempre com eles.

O furacão e a escuridão são os antigos símbolos da presença por trás da máscara. Enquanto os monstros míticos, o Sinuoso (Leviatan) e o Bestial (Behemot), elevam o enigma do mal sempre a uma escala universal, o arquiteto do cosmo revela a Jó, um simples indivíduo, as maravilhas da liberdade divina. O pragmatismo humano não tem lugar na ordem da criação, onde a chuva cai até sobre terras inabitadas (38,26). Ter fé é crer em um Deus livre – Yaohu, que se inclina, apesar das aparências contrárias, sobre a fraqueza, o pecado ou o orgulho da menor de suas criaturas.

Através do desenvolvimento desses temas, de modo indireto, por meio do procedimento dramatúrgico, o poeta esboça sutilmente um novo caminho para a compreensão da antiga noção de pecado. É esta a terceira intenção dos discursos do ETERNO e da resposta final de Jó. Diante da santidade que supera todo entendimento, o lutador desiste. A presença abriu-lhe os olhos. Agora ele vê com seus próprios olhos, em vez de conhecer por “ouvir dizer” (42,5).

Vendo a “santidade”, ele toma consciência do seu pecado. Não cometeu nenhum dos crimes de que o acusaram seus amigos, mas cometeu o crime por excelência do homem moral: constituiu-se num “julgo-Deus-Yaohu”. Sua confissão é, portanto, inevitável:

Também, por isso, tenho horror de mim e retrato-me no pó e na cinza (42,6-7).



Jó exigira uma audiência, a fim de defender sua honra, mas sua moralidade, sem que ele a notasse, tornara-se uma técnica destinada a obter um atributo sobre-humano, análogo ao dos reis antigos que se enfarpelavam com os ouropéis do direito divino (40,10-14).

A culpa de Jó não é de ordem moral; é a do homem que não somente se crê dono do próprio destino, mas ainda se erige, inconscientemente, em ser divino, uma vez que emite julgamento sobre Yaohu. Os discursos do ETERNO e a resposta de Jó contêm uma crítica ao subjetivismo humanista, que modela Yaohu pelas normas do pensamento humano. O poema de Jó separa a realidade de Yaohu das restrições da razão ou da moralidade humanas. O poeta antecipa o apóstolo Paulo, porque sua visão do ETERNO lhe permite discernir entre a idolatria da fé e a lei, concebida como fonte de autojustificação.





Texto e tradução. Em 1952, foram encontrados numa gruta perto do mar Morto os fragmentos de um manuscrito de Jó, em caracteres hebraicos antigos. Esta velha escrita, até então, parecia reservada aos livros do Pentateuco. Daí se vê a importância que alguns meios judeus atribuíam ao Livro de Jó desde antes da nossa era.

O texto hebraico do Livro de Jó oferece graves dificuldades. Parece que o antigo tradutor grego (Septuaginta) já tropeçara nelas. Às vezes, ele tenta escapar com uma paráfrase bastante vaga, outras vezes, pula certo número de versículos sem traduzi-los.

Foi necessário esperar até o trabalho crítico de Orígenes e o talento tradutor de Jerônimo para tornar as angústias de Jó acessíveis aos cristãos.

As particularidades do texto hebraico contrastam, muitas vezes, com o que os outros livros da Bíblia nos dão a conhecer da língua hebraica antiga. Diante disso, de um século para cá, os tradutores tomaram o hábito de considerar muitos versículos de Jó desfigurados por corrupções, que eles “corrigem” de maneira muitas vezes bem engenhosa. Entretanto, a exegese contemporânea foi adquirindo um senso sempre mais vivo da fragilidade dessas conjeturas e também do isolamento do Livro de Jó num contexto cultural hoje desaparecido. A presente tradução optou resolutamente pelo texto hebraico tradicional, inspirando-se amplamente nos comentadores judeus medievais para a interpretação das passagens obscuras.

VAMOS AS PRINCIPAIS PERSONAGENS DE JÓ:







Pontos fortes e êxitos:

Era um homem de fé, paciência e perseverança.

Era conhecido como alguém generoso e afetivo.

Era muito rico.





Fraquezas e erros:

Permitiu que o desejo de compreender o motivo do sofrimento o oprimisse e o levasse a questionar Yaohu.





Lições de vida:

Conhecer a Yaohu é melhor que conhecer as respostas.

Yaohu não é arbitrário ou descuidado.

A dor nem sempre é fruto de punição.





Informações essenciais:

Onde: Uz.

Ocupação: Rico fazendeiro.

Familiares: Esposa e dez filhos (nomes não mencionados). As filhas da segunda série de filhos – Jemima, Quesia e Quéren-Hapuque.

Contemporâneos: Elifaz, Bildade, Zofar e Eliú.







Versículos-chave: “Meus irmãos, tomai, por exemplo, de aflição e paciência os profetas que falaram em nome do ETERNO. Eis que temos por bem-aventurado os que sofreram. Ouvistes qual foi a paciência de Jó e vistes o fim que o ETERNO lhe deu; porque o ETERNO é muito misericordioso e piedoso” (Tg 5,10.11).







A história de Jó pode ser encontrada no livro de Jó. Ele é também mencionado em Ezequiel 14,14.20 e Tiago 5,11.

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